Por Ryan Holiday, via Administradores.com
Foto: Mohamed Mahmoud Hassan, via Public Domain
Há uma frase atribuída a Ernest Hemingway – que diz que “o primeiro rascunho de tudo é uma merda” – que, de todas as coisas bonitas que Hemingway escreveu, se aplica mais poderosamente ao final de Adeus às armas. Existem nada menos que 47 finais alternativos no livro. Cada um é uma janela do quanto Hemingway lutou para acertar. As páginas, que agora estão na Coleção Hemingway da Biblioteca John F. Kennedy em Boston, mostram Hemingway escrevendo as mesmas passagens repetidas vezes. Às vezes, o texto era quase idêntico, às vezes seções inteiras eram cortadas. Em um momento de desespero, ele até enviava páginas para seu rival, F. Scott Fitzgerald, para receber comentários.
Uma passagem claramente desafiou Hemingway mais que as outras. Isso acontece no final do livro, quando Catherine morre no parto de seu filho natimorto e Frederic luta para entender a tragédia que acaba de acontecer. “O mundo quebra a todos”, escreveu ele, “e depois muitos se tornam mais fortes, nos lugares quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata”.
Em diferentes rascunhos, ele experimentou versões mais curtas e mais longas. No rascunho manuscrito em que trabalhou com F. Scott Fitzgerald, por exemplo, Hemingway começa com “Você aprende algumas coisas à medida que avança…” antes de começar com sua observação sobre como o mundo nos quebra. Em duas páginas manuscritas digitadas, Hemingway mudou a parte sobre o que você aprende em outro lugar e, em vez disso, acrescentou algo que chegaria o livro final: “Aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los para conseguir eliminá-los, e é o que faz”
Meu argumento em mostrar essa parte do processo de Hemingway não é apenas refutar definitivamente o mito – em parte da própria criação de Hemingway – de que a boa escrita é algo que flui intuitivamente do cérebro de um gênio (não, a boa escrita é um processo lento e meticuloso, mesmo para gênios). Meu objetivo é dar uma perspectiva de uma das ideias mais profundas de Hemingway, que ele, considerando seu trágico suicídio cerca de 32 anos depois, lutou para integrar totalmente à sua vida.
O mundo é um lugar cruel e duro. Um que, por pelo menos 4,5 bilhões de anos, ainda não foi derrotado. De espécies inteiras de predadores, de Hércules ao próprio Hemingway, foi o lar de criaturas incrivelmente fortes e poderosas. E onde estão agora? Foram-se. Viraram pó. Como diz o verso da Bíblia que Hemingway usou para abrir outro de seus livros (e que inspirou seu título):
“Uma geração passa, e outra geração vem; mas a terra permanece para sempre … O sol também nasce, e o sol se põe, e se apressa ao lugar onde ele nasceu…”
O mundo está invicto. Então, realmente, para todos nós, a vida não é uma questão de “vencer”, mas de sobreviver da melhor maneira possível – de quebrar e resistir, em vez de dobrar o mundo à nossa vontade da maneira que às vezes suspeitamos que podemos quando somos jovens e arrogantes.
Escrevo sobre estoicismo, uma filosofia de autodisciplina e força. O estoicismo promete nos ajudar a construir uma “cidadela interior”, uma fortaleza de poder e resiliência que nos prepara para as dificuldades do mundo. Mas muitas pessoas interpretam isso da forma errada e presumem que o estoicismo é uma filosofia feita para nos tornar super-humanos – para nos ajudar a eliminar apegos e emoções irritantes e para nos tornar invencíveis.
Isto está errado. Sim, em parte o estoicismo é fazer com que você não se quebre com tanta facilidade – para que você não seja tão frágil que a menor mudança na sorte o destrua. Ao mesmo tempo, não se trata de encher você com tanta coragem e arrogância que você se considera inquebrável. Somente os orgulhosos e os estúpidos pensam que isso é possível.
Em vez disso, o estóico procura desenvolver as habilidades – a verdadeira força – necessárias para lidar com um mundo cruel.
Muito do que acontece está fora de nosso controle: perdemos as pessoas que amamos. Somos arruinados financeiramente por alguém em quem confiamos. Nós nos expomos, colocamos todo o nosso esforço em algo e somos esmagados quando isso falha. Somos convocados a lutar em guerras, a suportar enormes impostos ou encargos familiares. Somos ignorados pelo que queríamos tanto. Isso pode nos derrubar e nos machucar. Sim.
O estoicismo existe para ajudá-lo a se recuperar quando o mundo o quebrar e, na recuperação, para torná-lo mais forte em um nível muito, muito mais profundo. O estóico se cura, concentrando-se no que pode controlar: a resposta. A reparação. A aprendizagem das lições. Preparando para o futuro.
Esta não é uma ideia exclusiva do Ocidente. Existe uma forma de arte japonesa chamada Kintsugi, que remonta ao século XV. Nela, os mestres reparam pratos, xícaras e tigelas quebrados, mas em vez de simplesmente fixá-los de volta ao seu estado original, eles os tornam melhores. As peças quebradas não são coladas, mas fundidas com uma laca especial misturada com ouro ou prata. A lenda é que a forma de arte foi criada depois que uma tigela de chá quebrada foi enviada à China para reparos. Mas a tigela devolvida era feia – a mesma tigela de antes, mas rachada. Kintsugi foi inventado como uma maneira de transformar as cicatrizes de uma ruptura em algo bonito.
Você pode ver nesta tigela de chá, que data do período Edo e agora está na Galeria Freer, como as costuras douradas pegam uma tigela comum e adicionam a ela o que parecem raízes ou até vasos sanguíneos. Esse prato, também do período Edo, era claramente uma obra de arte em sua forma original. Agora ele tem um sutil preenchimento de ouro nas bordas, onde foi claramente lascado e quebrado pelo uso. Esta tigela de chá escuro, que agora está no museu Smithsonian, é acentuada com o que parecem relâmpagos intensamente reais de ouro.
Na cultura zen, a impermanência é um tema constante. Eles teriam concordado com Hemingway que o mundo tenta quebrar os rígidos e os fortes. Somos como xícaras – no segundo em que somos feitos, estamos simplesmente esperando para sermos despedaçados – por acidente, por malícia, por estupidez ou má sorte. A solução zen para essa situação perigosa é abraçá-la, ficar bem com a ruptura, talvez até procurá-la. A ideia de wabi-sabi é precisamente isso. Aceitar nossas imperfeições e fraquezas e encontrar beleza nisso.
Assim, tanto o Oriente quanto o Ocidente – estoicismo e budismo – chegam a ideias semelhantes. Somos frágeis, ambos percebem. Mas dessa fragilidade, uma das filosofias percebe que há uma oportunidade para a beleza. A prosa de Hemingway redescobre essas ideias e as funde em algo que é ao mesmo tempo trágico e de tirar o fôlego, que fortalece e traz humildade. O mundo vai nos quebrar. Ele quebra a todos. Sempre quebrou e sempre quebrará.
No entanto…
O autor lutará com o final do livro e tentará desistir. O reconhecimento que buscamos não chegará. O acordo de seguro de que tanto precisávamos será rejeitado. A apresentação para a qual praticamos começará mal e será afetada por dificuldades técnicas. O amigo que estimamos irá nos trair. A cena assombrosa de Adeus às armas pode acontecer, um filho natimorto e uma esposa perdida em trabalho de parto – e tragicamente ainda acontece com muita frequência, mesmo no mundo desenvolvido.
A questão é, como sempre, o que faremos com isso? Como vamos responder?
Porque isso é tudo que temos. A resposta.
A ideia não é descartar a imensa dificuldade de qualquer uma dessas provações. É estar, de antemão, preparado para elas – consciente, com humildade, de que podem acontecer. Em seguida, está a pergunta: resistiremos à quebra? Ou aceitaremos a vontade do universo e procuraremos nos tornar mais fortes onde estávamos quebrados?
Morte ou Kintsugi? Frágil ou, para usar essa maravilhosa frase de Nassim Taleb, Antifrágil?
Nem inquebrável, nem resistente. Porque aqueles que não podem quebrar, não podem aprender e não podem ser fortalecidos pelo que aconteceu.
Aqueles que não quebram são os que o mundo mata.
Não seja inquebrável. Seja, em vez disso, impossível de ser arruinado.
Adorei o conteúdo! Muito informativo e bem escrito.
Parabéns pelo ótimo trabalho, continue assim!